A boa-fé na negociação coletiva de trabalho após a reforma trabalhista

por Vitor Rocha Nascimento

Independentemente do mérito ou demérito da reforma trabalhista de novembro de 2017, uma coisa é certa: ela, para o bem e para o mal, trouxe profundas alterações na sistemática das relações coletivas de trabalho, na qual se insere com destaque a negociação coletiva trabalhista.

É bem verdade que, como um todo, o sistema jurídico atinente às relações coletivas de trabalho vinha paulatinamente recebendo modificações no seu trato, fosse por mudanças legislativas, fosse por posicionamentos jurisprudenciais, como são exemplos, respectivamente, a inserção do requisito do comum acordo para o ajuizamento de dissídios coletivos ocorrido em 2005 e a prolação de tema de repercussão geral pelo STF, em 2017, no sentido da filiação sindical do empregado como condição para desconto de contribuições assistenciais e/ou negociais.

Não obstante, no tocante às relações coletivas de trabalho, mais especificamente no que diz respeito às negociações coletivas de trabalho e seus produtos (acordos coletivos e convenções coletivas de trabalho), sem sombra de dúvidas a reforma trabalhista de novembro de 2017 é a mais significativa mudança no Direito Coletivo do Trabalho já ocorrida no ordenamento jurídico brasileiro, desde o seu próprio surgimento, que teve como marco a publicação da CLT nos idos de 1943.

De forma não exaustiva entre as modificações introduzidas na negociação coletiva de trabalho pela reforma legislativa em questão, mas dentro do que se pretende aqui brevemente se examinar, encontram-se: 1) a prevalência do negociado sobre o legislado como regra e não mais como exceção, restando menos matérias impositivas de prevalência legal; 2) em decorrência, uma maior abertura para hipóteses de condições de trabalho menos benéficas aos trabalhadores do que as previstas em lei; 3) a previsão de hierarquia legal superior do acordo coletivo de trabalho em relação à convenção coletiva de trabalho, em qualquer situação e não mais quando somente mais benéfica aos empregados.

Veja-se que, sem se adentrar em uma análise de mérito ou demérito das referidas inovações legislativas, de plano se pode afirmar com segurança que o novo ordenamento jurídico altera a hierarquia legal das normas coletivas criadas a partir de negociações coletivas, colocando-as, como regra, acima da legislação e, internamente às regras originadas a partir de negociações coletivas, as oriundas de acordos coletivos de trabalho acima das surgidas em convenções coletivas, adotando uma regra de especificidade.

Em suma, o princípio da proteção do trabalhador deixou de ter primazia na operacionalidade hermenêutica da resolução de conflitos de normas jurídicas no Direito do Trabalho, pois já não é a regra a prevalência da norma em função do seu conteúdo ser mais benéfico ao trabalhador, mas sim a supremacia da norma negociada pelas autonomias coletivas pertinentes, e, ainda, da norma mais específica possível ao caso em recorte de análise (acordo sobre convenção).

Ainda que seja incerto o rumo da jurisprudência no tangente ao assunto até aqui tratado, torna-se claro que a autonomia coletiva foi elevada, do ponto de vista hierárquico, ao patamar de principal produtor de normas trabalhistas, exceção feita à Constituição Federal brasileira de 1988 e às matérias vedadas à negociação coletiva pelo art. 611-B da CLT pós-reforma trabalhista (que, a bem da verdade, reproduz em grande parte as matérias já tratadas constitucionalmente e que, assim, não podem ser sobrepujadas por negociação coletiva, salvo excepcionalidade prevista no próprio texto constitucional).

E também parece evidente que esse novo nível de força e amplitude das normas criadas por negociações coletivas gerará reflexos no comportamento, nas estratégias, nos pleitos, enfim, em tudo que se refira ao procedimento negocial em si, no qual os entes sindicais e as empresas sentam-se às mesas de negociações para entabular acordos e convenções coletivas de trabalho.

E aqui, nesse aspecto de procedimento negocial em si, que, em sendo bem-sucedido, criará normas jurídicas, processo esse no qual se confrontam, mas também cooperam mutuamente as autonomias privadas dos entes coletivos de trabalho, a reforma trabalhista foi silente. Com efeito, não foram trazidas quaisquer novidades diretamente ligadas a regras ou deveres a serem observados pelos negociantes coletivos, mantendo-se, contudo, o dever de negociar previsto no art. 616 da CLT já antes da reforma trabalhista.

Nesse aparente contrassenso, já que ao mesmo tempo que eleva significativamente a importância da normas criadas pela negociação coletiva de trabalho, sem porém regular o procedimento negocial que as gerará, há algumas observações a serem feitas, começando-se por novidades trazidas própria reforma trabalhista que podem reforçar uma indicação de caminho a ser seguido nos processos de negociação coletiva.

É que ao majorar o alcance da autonomia coletiva dos entes coletivos de trabalho – bem como ao colocar o direito comum como subsidiário ao direito do trabalho de forma mais abrangente que antes (art. 8º, §1º, da CLT pós-reforma) e ao restringir a possibilidade de análise do Poder Judiciário sobre o conteúdo de cláusulas normativas (atual art. 8º, §3º, da CLT pós-reforma) aos ditames do Código Civil incidente sobre os elementos essenciais dos negócios jurídicos (art. 104 do CC) -, inegavelmente o legislador trouxe ainda mais à baila a necessidade de recurso às bitolas de controle gerais dos negócios jurídicos nas negociações coletivas de trabalho.

Entre tais bitolas se destaca inegavelmente a boa-fé objetiva, posta no ordenamento jurídico brasileiro não só como um princípio geral de direito, mas também como uma cláusula geral (art. 422 do CC) a ser observada em todo e qualquer negócio jurídico e, por óbvio, em toda e qualquer negociação coletiva de trabalho, já não tão-somente como um integrador sistemático entre os diversos ramos do direito componentes do sistema jurídico como um todo, mas agora já como regra impositiva direta aplicável ao universo das negociações coletivas de trabalho, conforme a própria axiologia sistemática forjada pela reforma trabalhista.

Ou seja, a boa-fé objetiva e seus deveres anexos de colaboração na negociação, de prestações de informações na negociação, de tentativa sincera de sucesso negocial e de atendimento mútuo de expectativas e interesses, entre outros, impõem-se às negociações coletivas e, em sua eventual inobservância, seja na fase de negociações, seja na fase posterior de cumprimento do acordado, podem, sim, levar à anulação de cláusulas coletivas ou, até mesmo, de sua revisão.

É nesse novo cenário que devem transitar os entes sindicais e as empresas, cenário esse no qual todos devem envidar esforços para, sem abrir mão da defesa dos seus interesses, compreender o outro lado, respeitar-lhe e mutuamente transigirem e colaborarem para negociações coletivas não só produtivas e eficazes, mas justas, no sentido ontológico de serem originadas a partir da boa-fé objetiva, com concessões recíprocas nascidas de decisões totalmente esclarecidas e honestas para com a contraparte.

Para finalizar essas perfunctórias observações, há que se alertar que esse procedimento negocial pautado pela boa-fé objetiva não só pode e deve otimizar o sistema de relações coletivas de trabalho sob os vieses econômicos e sociais, como também pode e deve servir de baliza para verificação de validade ou invalidade de normas coletivas criadas, daí ser mister que as entidades sindicais e as empresas cumpra com seus deveres de boa-fé e, ainda, bem documentem isso para resguardar suas posições em possíveis conflitos ou divergências futuros.

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